Há quatro dias, eu tive acesso a uma lista que recomendava 50 profissionais brasileiros de Produto (Digital) para seguir e, pasmem, somente 11 eram mulheres. Podemos tentar levantar diversos motivos para esse fato, mas não é novidade para ninguém que não existe um equilíbrio de gênero no mercado de tecnologia.
De acordo com uma pesquisa realizada pela Revelo sobre as vagas nesse mercado:
- A diferença de remuneração oferecida para homens e mulheres era de 22,4% em 2017 e passou a 23,4% em 2019.
- Mesmo áreas em que as mulheres são maioria, como marketing online (54%), os homens dominam cargos de liderança (57%).
- Pretensão salarial das mulheres é, em média, 22% abaixo da dos homens.
Veja a pesquisa completa em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/10/06/mulheres-avancam-na-area-de-tecnologia-mas-diferenca-de-salarios-aumenta.htm
Essas informações me dizem que existe uma concepção no mercado de que mulheres não são tão capazes quanto os homens, mesmo que seja algo escondido, lá atrás, no subconsciente, mas que no fim do dia reflete nos dados. É provável que você nunca tenha pensado exatamente com essas palavras “os homens são mais capazes que as mulheres”, mas quando entrevistou uma mulher, pode ter dado mais ênfase às competências que ainda faltavam para ela, enquanto em uma entrevista com um homem com as mesmas qualificações, pode ter dado mais ênfase às competências que ele já tinha desenvolvidas. Tudo isso de forma inconsciente, mas na hora de tomar a decisão racionalmente, essa avaliação justificaria dar o cargo para o homem em vez da mulher ou contratar os dois, com uma possível diferença de salário entre eles. Mesmo que ambos estivessem no mesmo nível. É algo sutil, muitas vezes difícil de perceber.
Para ilustrar mais, gostaria de compartilhar com vocês algumas situações reais que aconteceram com mulheres que conheço e que trabalham na área de tecnologia. Essas situações podem servir para que: 1. as mulheres que já passaram coisas parecidas, mas ainda acham que é algo da cabeça delas, entendam que é algo real e não é tolerável; 2. os homens no geral, tanto os que acham que têm quanto os que acham que não têm esse tipo de comportamento, prestem mais atenção nas suas atitudes.
(As histórias foram adaptadas para preservar o anonimato das pessoas em questão e estão em primeira pessoa somente para aproximar o leitor).
Naquela tarde, eu precisava colocar no ar uma iniciativa importante, mas infelizmente no mesmo dia tiraram os desenvolvedores da minha squad para resolver outros assuntos pontuais. Pedi à pessoa que estava priorizando as atividades dos devs naquele período para priorizar esse deploy. Ele disse que não. Expliquei todos os motivos pelos quais aquilo era importante e o que traria de retorno para o negócio, tentando fazê-lo enxergar que, para a empresa, esperar não era uma boa opção. Ele continuou dizendo não.
No fim do dia, ele foi convencido. Mas não por mim. Eu pedi ajuda para outro homem, que repetiu todas as palavras que eu tinha dito, e ele concordou.
Eu estava trabalhando na minha mesa e o diretor estava dentro da sala com alguns desenvolvedores, aparentemente tentando chegar a um acordo sobre algum tema. Ele me chamou e eu entrei, perguntei sobre o que eles estavam discutindo e como eu poderia ajudar. A resposta foi curta e direta, ele queria que eu ajudasse com a minha presença feminina, pois uma mulher ajudaria a deixar o clima da sala mais leve. Perguntei se isso significava que eles não queriam minha opinião sobre o assunto e vocês já devem imaginar a resposta.
Estávamos todos sentados, acredito que éramos em 10 pessoas, e o ambiente estava bem equilibrado entre homens e mulheres. A reunião começou e fluiu até chegarmos a um desentendimento com o novo gestor de TI. Essa situação era esperada porque ele ainda não conhecia o contexto da empresa. Eu e duas gerentes explicamos nosso ponto. “Ah tá… Sei… Mas mesmo assim, continuo achando que não deveria ser assim” . Continuamos tentando explicar, até que dois homens interviram e repetiram o que nós tínhamos dito. O gerente olhou para eles como se fosse a primeira vez na vida que ouvia aquela explicação. “Ah! Entendi! Claro, faz todo sentido”.
Tirei férias durante um tempo, mas deixei todas as histórias escritas e o backlog priorizado para a squad continuar trabalhando. Quando voltei, nada tinha sido feito. As pessoas que trabalhavam comigo listaram todos os impedimentos que elas tinham enfrentado naquele período e eu, sem saída, entendi. Após alguns dias, em uma conversa franca na qual eu estava relatando para elas as dificuldades que eu tinha com os líderes de tecnologia, elas abriram o jogo: “Olha, na verdade, nós não fizemos o que você tinha deixado priorizado porque o gerente não deixou. Ele pediu para fazermos exatamente o que você tinha falado para ele que nós não deveríamos fazer. E, além disso, ele pediu pra gente não contar pra você.”
Sobre salário, não preciso nem comentar. Vejo meus amigos homens, com a mesma experiência que minhas amigas mulheres, ganhando mais do que elas. Mas pra isso não precisa de história, estão aí os dados.
Todas as situações que coloquei aqui são frequentes no dia a dia de uma mulher. Principalmente as mais sutis, como alguém não escutar ou absorver o argumento, sem perceber que está fazendo isso porque é uma mulher falando, e desconsiderá-la na tomada de decisão.
Acredito que situações mais graves são mais difundidas e percebidas (e mesmo assim ainda falta muito chão para chegar ao ideal), porém temos que começar a cavar mais esse buraco e perceber situações mais “corriqueiras”, que aparentemente não possuem “nada de mais”, mas que são machistas e não podem ser toleradas. Apesar de parecerem inofensivas, são geradas pelo mesmo tipo de pensamento que vai questionar a capacidade da mulher, dar um salário menor para ela, ou um cargo abaixo do que ela realmente merece.
Por isso é necessário repensar esses vieses inconscientes que temos e que interferem na nossa tomada de decisão, e analisar com cuidado se realmente estamos enxergando um homem e uma mulher da mesma forma.